03 Novembro 2022

À procura das especificidades da complexa interligação entre o cancro, as metastases e o meio envolvente

A edição de 2022 do Champalimaud Research Symposium (CRSy2022) teve por título “O Microambiente tumoral - do início do cancro às metástases”. Mostrou que os investigadores têm progredido na compreensão de como o meio envolvente dos tumores influi sobre a formação, o crescimento e o tratamento do cancro – reforçando a pertinência deste evento, neste momento.

À procura das especificidades da complexa interligação entre o cancro, as metastases e o meio envolvente

Tudo à volta de um tumor maligno e das suas metástases, desde o chamado microambiente até aos próprios doentes enquanto pessoas, influi sobre o tumor canceroso e, em última análise, sobre o desfecho da doença. Assim se pode resumir o essencial do que foi discutido durante os três dias do CRSy2022 – o simpósio científico internacional que decorreu na Fundação Champalimaud, em Lisboa, de 19 a 21 de Outubro.

O que é o microambiente tumoral? Simplificando, é a área circundante imediata do tumor, feita de células imunitárias, células que compõem os vasos sanguíneos e outras células não cancerosas, bem como de moléculas de sinalização. E o mais importante é que o próprio tumor pode alterar esse microambiente para crescer mais depressa e alastrar para locais distantes no corpo. Este papel crucial do microambiente tumoral no desenvolvimento do cancro, que tem sido subestimado, começa agora a ser reconhecido devido à acumulação de novos dados.

Se fosse necessário provar a existência desta nova tendência, os 24 investigadores que falaram ao público do Auditório Champalimaud e aos participantes online, ao longo de três dias, constituem uma prova suficiente do interesse científico gerado pelo ambiente tumoral – não só ao nível microscópico, mas também macroscópico –, incluindo a totalidade do corpo e até às circunstâncias psico-sociais do doente.

Seguem alguns destaques do evento.

Baleias e ratos resistentes ao cancro

No primeiro dia do simpósio, Vera Gorbunova, bióloga molecular especializada no envelhecimento, da Universidade de Rochester, deu uma conferência fascinante sobre a longevidade e a resistência ao cancro. Mais especificamente: por que é que certos animais muito longevos, tais como o rato-toupeira-nu (um pequeno roedor que pode viver mais de 30 anos) e a baleia-da-Gronelândia (que pesa cerca de 60 toneladas e é um dos animais mais longevos do planeta, com um tempo de vida observado de 211 anos!) nunca ou quase nunca desenvolvem cancro?

Isso é de facto paradoxal, visto que quanto mais longevo for um animal (ou uma pessoa), maior a probabilidade de desenvolver cancro devido a erros de replicação do ADN durante a divisão celular. Já agora, os elefantes, que vivem até aos 70 anos, também são surpreendentemente resistentes aos tumores malignos. Neste caso, a resistência deve-se ao facto de terem cópias adicionais do gene supressor de tumores p53. Mas as baleias-da-Gronelândia e as outras espécies (incluindo os humanos), não possuem essa defesa genética. 

“Se as baleias-da-Gronelândia não desenvolveram cópias adicionais de genes supressores de tumores ao longo da evolução”, disse Gorbunova, “como é possível que não tenham cancro?”. Ao longo do trabalho que fizeram para perceber por que os ratos-toupeira-nus e as baleias-da-Gronelândia são exímios na resistência ao cancro, Gorbunova e os seus colegas colocaram a hipótese de que estes animais deviam estar a usar outros mecanismos de defesa, pouco comuns, contra o cancro.

Vera Gorbunova - CRSy22

Descobriram então que os ratos-toupeira-nus devem a sua resistência a uma molécula – o ácido hialurónico, conhecido ingrediente cosmético – que, nestes animais “tem um tamanho cinco vezes maior do que a mesma molécula nos ratinhos, nos ratos e nos seres humanos” e é muito mais abundante. Porquê? Provavelmente porque a pele dos ratos-toupeira-nus precisava de plasticidade cutânea para viver em túneis subterrâneos sem sofrer feridas. Foi uma sorte para estes animais que este ácido hialurónico “de alto peso molecular” fosse também um poderoso composto anti-cancro e promotor da longevidade.

Quanto às baleias-da-Gronelândia, a evolução equipou-a com um mecanismo anti-cancro totalmente diferente: um mecanismo muito eficiente de reparação do ADN. Gorbunova e a sua equipa mostraram que uma proteína chamada “proteína de ligação ao ARN induzida pelo frio” (CIRBP na sigla em inglês), poderosa reparadora de quebras duplas no ADN, é muito mais abundante nas baleias-da-Gronelândia do que noutras espécies. “Estas baleias vivem em águas frias – e nós talvez possamos beneficiar deste resultado. A presença desta proteína poderá permitir explicar por que os duches de água fria e os banhos em águas gélidas são bons para nós”, concluiu Gorbunova.
 

Ligar o cancro, desligar o cancro

No segundo dia, o palestrante mais aguardado era provavelmente o orador principal Gerard Evan, da Universidade de Cambridge, e a sua apresentação intitulada “Fazer e quebrar cancros”. Ou, dito de outra forma: de onde vêm os cancros e como fazê-los desaparecer. 

Gerard Evan - CRSy22

Há décadas que Evan estuda um gene promotor do cancro (ou oncogene) chamado c-Myc, tendo participado na sua descoberta. “[C-]Myc é necessário para a manutenção de um grande número de cancros, muito diversos”, disse durante a sua intervenção. Isso implica que futuros tratamentos baseados em c-Myc poderão funcionar num grande leque de cancros.

Mas c-Myc desempenha também um papel no normal funcionamento celular – e quando é activado (“ligado”) no sítio certo, na altura certa, promove a proliferação celular normal.

Durante as suas pesquisas, Evan obteve um resultado desconcertante: dependendo das condições envolventes, a activação de c-Myc podia conduzir as células cancerosas ao “suicídio” (através de um mecanismo chamado apoptose) em vez de induzir a sua proliferação descontrolada. Isso quer dizer que c-Myc é capaz de desempenhar duas tarefas absolutamente contraditórias, sendo ao mesmo tempo um oncogene e um gene anti-cancro.

“O trabalho de Evan mostrou que as células cancerosas existem num delicado equilíbrio de vida e de morte, dependendo das condições em que crescem”, explica um artigo em https://news.cancerresearchuk.org/, o site da agência britânica que hoje financia a investigação de Evan. “Dado que o mesmo gene promove a proliferação e a morte celular, basta um pequeno empurrão num sentido ou no outro para a balança pender para esse lado.” E o mesmo texto acrescenta: “O trabalho de Evan mostrou que, embora c-Myc seja um oncogene, basta uma diminuta alteração do microambiente tumoral para desencadear o suicídio das células cancerosas sob a sua influência”. Ou, como o próprio Evan declarou, “para pôr cobro ao desenvolvimento de um tumor”.  

Evan focou as suas pesquisas principalmente nos cancros do pulmão e do pâncreas. E o facto é que, disse ainda, “[c]-Myc é um interruptor do cancro quando está ligado e também quando está desligado (...). Assim que é desligado, promove a regressão tumoral, no pâncreas tanto como no pulmão.”

É por isso que, no seu esforço para utilizar c-Myc como alvo de novos tratamentos do cancro, Evan disse: “há muito tempo que estou a tentar interessar as pessoas na inibição do gene c-Myc”. E acrescentou que o seu trabalho “é muito excitante, mas ainda temos muito trabalho pela frente”. 

À procura de biomarcadores do cancro da mama que façam a diferença

O terceiro e último dia do simpósio começou com a palestra da oradora principal Fátima Cardoso, a investigadora e médica oncologista que dirige a Unidade de Mama da Fundação Champalimaud. A sua intervenção foi, sobretudo, um apelo aos investigadores em ciência de base para encontrarem novos e úteis “biomarcadores preditivos” – isto é, moléculas, sinais químicos vindos do tumor, “que tornem os médicos capazes de prever a resposta de um cancro a um tratamento antes de o administrarem” a um doente.  

Fatima Cardoso - CRSy22

Para dar uma ideia da situação actual no que diz respeito às decisões de administrar quimioterapia aos doentes com cancro da mama, Cardoso citou os resultados do ensaio clínico europeu MINDACT, coordenado pelo consórcio internacional TRANSBIG – e no qual a Unidade de Mama da Fundação participou. O MINDACT destinava-se a validar um teste genómico do cancro da mama, chamado MammaPrint e baseado nos 70 genes mais importantes associados à recorrência do cancro da mama. E permitiu concluir que “em 46% dos casos classificados como de alto risco [para a recorrência], teria sido possível evitar a quimioterapia”, salientou a médica-cientista. 

Cardoso também falou de outras potenciais maneiras de abordar o problema da optimização e da personalização do tratamento do cancro da mama, tal como a crescente utilização de larvas de peixe-zebra como “avatares” de doentes individuais – modelos animais nos quais se introduz o tumor do doente para a seguir submeter-se as larvas a diversos tratamentos e comparar os resultados. Também evocou a utilização de vesículas extracelulares derivadas do tumor, que são pequenos “sacos” cheios de material vindo do tumor de cada doente, como potenciais marcadores tumorais.

Num plano mais geral, Cardoso enfatizou a importância de haver um “contínuo de dados”. Desde o microambiente tumoral até ao ambiente psicológico e social de cada doente, esta massa de informação seria integrada numa “biblioteca de doentes e avatares digitais” (actualmente em desenvolvimento na Unidade de Mama) que poderia, a seguir, ser analisada com a ajuda da Inteligência Artificial. Seria assim possível extrair informação sobre como doentes semelhantes foram tratados e qual foi o resultado, de maneira a orientar as decisões no caso de doentes que ainda não foram tratados. “Esta abordagem encontra-se mais perto da aplicação clínica do que poderiam imaginar”, disse Cardoso, destacando que “um doente é muito mais do que o seu tumor!”

“Qual é o papel do hospedeiro no cancro?”, prosseguiu Cardoso. Respondendo à sua própria pergunta, disse que, no cancro da mama, o conhecimento adquirido sobre as interacções entre o microambiente tumoral, as condições hormonais e as condições imunitárias “ainda não são implementáveis na prática clínica”.

Acrescentando que sentia uma “certa perda do sentido de urgência” por parte dos especialistas, Cardoso insistiu no facto que 10 milhões de pessoas morrem de cancro da mama no mundo (equivalente à população de Portugal), cada ano. “Talvez uma postura mais direccionada seja melhor do que ir à pesca” de biomarcadores preditivos, disse ainda, salientando a importância “da translação dos resultados da ciência para a clínica”, algo que ainda não aconteceu “nos 22 anos desde que começámos a falar” de investigação translacional. A clínica e o laboratório continuam afastados”, concluiu. 

Quando as células dormentes iniciam a eclosão metastática

A última conferência do simpósio foi proferida pelo orador principal Joan Massagué, do Memorial Sloan Kettering Cancer Center. O seu título: “Dormência e eclosão das células iniciadoras de metástases”.

Joan Massagué

“As metástases são mais difíceis de tratar do que os tumores primários”, começou por dizer Massagué. “Como fazer para prevenir e tratar a recorrência do cancro?” Um dos problemas é que as mutações genéticas pouco explicam como e onde as metástases ocorrem. “Ainda não foi identificada nenhuma mutação causadora de metástases”, acrescentou Massagué. “E existem indícios de que factores neurais, imunitários e endócrinos também têm impacto na formação de metástases.” Para o investigador, uma ideia-chave é que “o cancro e as metástases são um problema do corpo no seu todo”. 

“Seria possível atingir as metástases nascentes, eliminar as metástases dormentes?”, perguntou. Para responder a esta pergunta, Massagué tem focado a sua investigação numa proteína em particular – chamada L1CAM –, que é normalmente expressa apenas pelos neurónios. Mas de facto, a expressão da L1CAM também foi observada em todo o tipo de células cancerosas, e a sua elevada abundância está associada às metástases. Para além disso, a L1CAM desempenha um papel importante nos processos inflamatórios que ocorrem no tecido não canceroso à volta de um tumor.

Pensa-se também que a L1CAM poderá fazer com que as células cancerosas se separem umas das outras e comecem a migrar para outras partes do corpo. Dados estes resultados, é possível colocar a hipótese que o bloqueio da L1CAM seria susceptível de inibir a migração de células cancerosas e a progressão tumoral. Mas as potenciais terapêuticas que envolvem a L1CAM como alvo, no cancro humano, ainda não saíram do laboratório.

Não seria possível finalizar esta visão de conjunto do CRSy2022 sem mencionar brevemente certas ideias interessantes propostas por outros oradores durante os três dias de simpósio.

Shahin Raffi, do Weill Cornell Medicine – especialista mundial em células endoteliais (as células que revestem a parede interior dos vasos sanguíneos) e em células endoteliais tumorais –, falou do seu trabalho, mostrando que as células endoteliais dos vasos sanguíneos do microambiente tumoral são capazes de segregar “factores angiócrinos de crescimento” que estimulam a agressividade dos tumores, incluindo a formação de metástases distantes e a resistência à quimioterapia. Esta é uma nova forma de olhar para o papel das células endoteliais na progressão e na metastização do cancro, uma vez que, inicialmente, a importância das células endoteliais neste contexto apenas era atribuída ao seu papel na formação de novos vasos sanguíneos, algo que também é crucial para a iniciação e o crescimento do cancro. Existem agora resultados que sugerem fortemente, como mostrou Raffi, que considerar estes factores angiócrinos como alvos terapêuticos poderá constituir uma potente estratégia anti-tumoral.  

Michelle Monje-Diesseroth, da Universidade de Stanford, explicou como a actividade neuronal normal, nos sistemas nervosos central e periférico, pode promover o cancro. Jeffrey Pollard, da Universidade de Edimburgo, salientou que células imunitárias tais como os macrófagos podem ser subvertidas, tornando-se “traidoras” e promovendo cada etapa da formação de metástases. Héctor Reinaldo Selgas, do CNIO, falou de como as vesículas extracelulares derivadas de um tumor influem sobre a formação de nichos pré-metastáticos nos gânglios linfáticos. E Salvador Aznar Benitah, do Barcelona Institute for Research in Biomedicine, fez notar que o ácido palmítico, o principal componente do óleo de palma, faz aumentar enormemente o risco de formação de metástases.

É indubitável que devemos estar atentos a todas estas vias de investigação no campo do ambiente tumoral. No futuro, elas poderão abrir novos caminhos de investigação e aplicação clínicas, que talvez resultem em benefícios concretos para os doentes que sofrem de cancro.    
 

Por Ana Gerschenfeld, Health&Science writer da Fundação Champalimaud.
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